sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Memórias de um homem que aspirava a santo


"Sinto Muito" é a viagem de autodescoberta daquele que achava ser o irmão Lobo Antunes sem talento.

É o mais improvável dos "best-sellers" do ano: "Sinto Muito" é um conjunto de histórias de médico, escritas de forma lírica e emotiva. Mais que diagnósticos certos ou errados, retratam a experiência da dor e da solidão inerente à condição do doente, mas também do médico, que é para o paciente o elo de ligação a uma possibilidade de recuperarem. Em pouco tempo esgotou nove edições e aproximou-se dos 50 mil exemplares vendidos.

O mérito é de Nuno Lobo Antunes, neuro-oncologista pediátrico e autor das crónicas que "Sinto Muito" colige, escritas originalmente (com uma dezena de excepções) para a revista "Lux", de que a mulher é editora. Originalmente, o médico, nascido em 1954, fazia "a culinária da medicina", isto é, "escrevia conselhos de saúde, penso eu que bem feitos e correctos, de fácil leitura". Um dia pensou: "Vou contar um bocadinho o que foi a minha experiência" e surgiu "A Humanidade no Seu Melhor", primeira crónica deste livro: é um texto sobre como conviver com o desgosto, como conviver diariamente com a morte e a impotência face à doença, a incapacidade de salvar os doentes. A experiência veio a revelar-se fascinante.

"Fui inundado de 'mails' de pessoas a quem a crónica tinha tocado", conta Lobo Antunes. Ao falar da reacção à sua primeira crónica "pessoal", a voz toma um ligeiro tom emocionado. "Pensei: 'Espera lá, se calhar até sou capaz de fazer isto de uma forma que toque as pessoas e que seja literariamente competente'. E, pouco a pouco, a mão foi escorregando."

Lobo Antunes escrevia na "Lux" de mês a mês, alternando com outros médicos que, como ele, ofereciam os seus conselhos de saúde. Ainda assim, e apesar do interesse dos leitores perante a nova abordagem, houve obstáculos a vencer para poder continuar a revisitar as suas memórias na revista. "A minha mulher, que é editora da revista, dizia-me: 'O que te peço são conselhos sobre saúde, não é isto'. Eu disse-lhe: 'Das duas uma: ou me põem fora ou escrevo sobre estas coisas'."

Texto a texto, Lobo Antunes começou a aperceber-se "que havia várias pessoas que recortavam as crónicas e as punham num 'dossier'". Isso, diz, tocou-o imenso. "De repente escrevia uma coisa qualquer na 'Lux' e uma jovem cabeleireira de Sever do Vouga mandava-me um 'mail' a dizer que no intervalo do trabalho a arranjar cabelos tinha lido a minha crónica e que a crónica a tinha tocado profundamente."

Mas "Sinto Muito" não é apenas uma compilação de mortes, de rostos esquecidos naquela que é talvez a mais terrível das enfermarias, a da oncologia pediátrica. É igualmente um livro que traça um trajecto, a experiência pessoal do próprio Nuno Lobo Antunes. Quase se podia dizer: o crescimento de Nuno Lobo Antunes.

Emocional e emocionada

Uma boa parte do sucesso do livro é o seu tom emocional e a humildade com que o médico relata as suas memórias: como se cada encontro com um doente lhe ensinasse um pouco mais da abnegação de que o ser humano é capaz. E Lobo Antunes descreve essas pessoas, comovido. "Penso que as pessoas querem ser tocadas", reflecte o autor, no seu escritório no CADIn, o Centro para o Apoio e Desenvolvimento da Infância, uma clínica privada onde hoje exerce. "Esse é o segredo do livro: a escrita vinha atrás da emoção e não o contrário".

Lobo Antunes considera que esta é uma escrita "emocional e emocionada" e quando lhe perguntamos se alguma vez pensou escrever estas crónicas sem lirismo, se alguma vez pensou, no fundo, limitar-se a contar as histórias, responde: "Não, isso não sou eu, não me interessa. Isso já eu faço quando faço o relatório de um doente. Isso é o meu dia-a-dia: faço o relatório e a secretária passa à máquina".

A emocionalidade é uma tentativa constante de perceber o outro (o doente). Daí Lobo Antunes escrever tantas vezes sobre a importância da "comunicação". No fundo há aqui uma ideia humanista da medicina enquanto diálogo entre paciente e médico. "Essa questão da comunicação é crucial para as pessoas não só tratarem do corpo mas também da alma, no sentido em que seguramente o tratamento de um doente não se resume a passar uma receita, é algo muito mais complexo e vasto do que isso e passa pela comunicação. Passa pela empatia, por perceber que pessoa é aquela, que família é que tem, o que é que ambicionou na vida, quais são os seus projectos, por que mágoas passou, que cultura é que a premeia, tudo isso - só assim podemos dar a resposta àquele indivíduo e isso passa-se a um nível afectivo. É a interrogação: 'Quem és tu?'"

Essa questão existencial está retratada na frontalidade com que o próprio autor expõe os seus medos, não só enquanto médico mas igualmente enquanto pessoa. Por outras palavras: esse "Quem és tu?" que o médico coloca perante cada paciente, também é colocado perante si mesmo - e portanto "tudo o que não corre como nós achamos que deve correr, pode ser vivido como 'Paciência, demos o nosso melhor', ou então como 'Merda, merda, merda'. A questão é essa".

As histórias destas pessoas são, por isso, a história de uma constante inquirição do que é o papel do médico. Daí que, logo na introdução, Nuno Lobo Antunes fale do seu percurso até se tornar neuro-oncologista pediátrico e posteriormente chegar a este livro, sempre com um desejo "de ser santo" (como escreve): filho de médico conceituado, irmão de médicos e, acima de tudo, criança que esteve gravemente doente e que foi educada "numa cultura de rigor, de fazer bem, de aspirar pela perfeição".

No seu caso, a escolha não dependeu apenas da família, mas também de uma quase tragédia. "Eu adoeci gravemente quando era miúdo [aos três anos]. E tive uma boa relação com os pediatras que me trataram. A imagem do pediatra tornou-se para mim uma referência masculina de afecto."

A doença foi fundamental para torná-lo médico também pelo peso que lhe colocou desde cedo, pela precoce consciência da morte: "É preciso ter alguma maturidade para se ter a percepção do que é a morte. Mas a minha mãe conta que eu dizia: 'Vou morrer e quero o meu paizinho'. Ora, eu tinha três anos, não é de todo natural um miúdo de três anos verbalizar: 'Eu vou morrer'. Deve ter sido algo muito traumático, muito pungente, para dizer uma coisa destas. Agora, que efeitos tem a prazo sobre a minha personalidade talvez um psicanalista, se escavar o suficiente, possa descobrir."

Obviamente, e vindo da família que vem, a "atracção para a medicina era algo que bebia no quotidiano enquanto criança: com dois irmãos mais velhos médicos e pai médico, as questões da medicina estavam sempre presentes à hora do jantar". Lobo Antunes exemplifica a sua proximidade da medicina com uma história curiosa: "Eu cresci com um esqueleto ao lado - antigamente Anatomia era feita com esqueletos verdadeiros, e o António tinha uma caveira que servia de cinzeiro. Ele lidava com aquilo com uma naturalidade enorme, se quisesse podia brincar à espada com uma costela."

O quinto filho

Com honestidade, o neuropediatra reconhece ainda que havia, no seu imaginário infantil, uma questão de 'statu' associada à medicina (e distante da crueza da tragédia que veio mais tarde a encontrar): "As visitas que fazia com o meu pai quando ia ter com ele ao serviço eram marcantes: gostava do ambiente do hospital, das enfermeiras de bata, dos cheiros, da forma cerimoniosa como o meu pai era marcado. Isso era marcante."

Neste processo confessional surge uma espécie de complexo de inferioridade face aos irmãos António (escritor) e João (médico), complexo que assume: "É completamente verdadeiro. Não sei é se não é inevitável quando se é o quinto [irmão] de vários irmãos brilhantes."

Ora, Nuno, ao contrário dos irmãos, "não era brilhante": "Quando eu estava a crescer tinha a ideia de que os irmãos que me antecediam eram todos bons, alguns deles excelentes, como era o caso do António. E eu nunca o fui. Nem de longe, nem de perto. Era um aluno de 10". Frase fundamental: "Quando se tem essas figuras todas por cima é um bocado difícil encontrar um caminho". A pergunta que Nuno se colocava era: "Onde é que está a minha qualidade, se a tenho?"

Fica por vezes a ideia de que há uma identificação com o doente enquanto ser que não é um vencedor nato. Ou mesmo enquanto sofredor.

Quando Nuno decidiu ser neuropediatra, escreveu ao irmão João, que lhe disse: "Então vem para cá, que na Universidade de Columbia temos o melhor grupo de neuropediatria da América". "Havia centenas de candidatos americanos para esse lugar. Todos os verões, nas férias, ia para lá como voluntário. As pessoas conheciam-me e criei algum prestígio. Aceitaram-me no programa, fui o único estrangeiro a consegui-lo em muitos, muitos anos." Novamente com humildade refere que "também estava lá o meu irmão, o que foi um factor importante".

Uma boa parte das histórias do livro passa-se em Nova Iorque, para onde Lobo Antunes se mudou quando tinha 31 anos. Lá trabalhou de 1985 a 1988 e, mais tarde, entre 1994 e 2001. As restantes histórias têm por palco a província ou hospitais lisboetas, tudo cenários de tragédia.

Quando chegou a Nova Iorque, Lobo Antunes não olhou para as histórias que lhe aconteciam à frente como literatura, "antes de mais porque nunca" pensou "que pudesse ter algum talento para escrever algo que desse para ser publicado". O que vivia era simplesmente: "You have a job to do". "No dia em que cheguei - conta - puseram-me de urgência. Espetaram-me com três bips no cinto e disseram: 'Estás de banco'. É-se obrigado a ser-se o melhor que se pode ser. A saber até onde se pode ir e como se reage em situações muito complicadas. No fundo é-se obrigado a saber quem se é, onde se pode chegar."

E onde pôde chegar Nuno Lobo Antunes? "Até onde o livro relata." "Estas histórias durante muito tempo andaram às voltas - confessa - e reemergiam com grande frequência. Alguns destes textos foram escritos muito rapidamente, em meia hora. Mas, se eu começar a pensar, isso é falso. É como as betoneiras que andam com cimento lá dentro, pela cidade, sempre a trabalhar. Eu sinto-me um bocado a betoneira: andava de um lado para o outro a fazer outras coisas, e as histórias andavam cá à volta e depois quando me sentava a escrever as coisas saíam. É como declarar uma paixão: as coisas saem naquele turbilhão e pode sair uma coisa muito bela e muito pronta já. Eu tinha de parar e, dois dias depois, trocava duas ou três palavras e o grosso já estava."

Últimas palavras de um homem emocional: "Não há facilidades aqui, isto é um livro de dificuldades".

02.01.2009
Por: João Bonifácio - Aqui

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