"A medicina nunca afastou ninguém da literatura, nem mesmo entre nós, onde os exemplos abundam. Fernando Namora é talvez o mais conhecido dos médicos escritores portugueses, mas está longe de ser o único. Sem a pretensão de ser mais um, o neuropediatra Nuno Lobo Antunes (n. 1954) acaba de reunir em volume um notável conjunto de ensaios sobre as suas experiências profissionais, grande parte dos quais teve primeira publicação numa revista generalista onde assinava uma coluna de divulgação médica. No prefácio de Sinto Muito, assim se chama a colecção, António Damásio cita o poeta romântico inglês William Wordsworth para estabelecer um paralelo entre o «espectáculo aterrador» que os olhos do autor (enquanto médico) têm de enfrentar, e a lição apaziguadora dos gregos: a catarse pela escrita.
Damásio sublinha que o livro «é sobre o sofrimento em geral, ou se quisermos, sobre a dor, seguida de perda, seguida de dor.» Como decorre da leitura dos textos coligidos, a expressão “sinto muito” não é o equivalente de “lastimo” (ou lamento). O sentido de perda que o título enfatiza é parte da narrativa: «Os velhos morrem a horas impróprias. Maçavam, mesmo mortos, e insistiam em escolher o meu turno de vigia. Depois aquela obrigação de telefonar para casa, anunciando à viúva, que de ora em diante estaria como eu, sentindo o peso da noite porque estamos sozinhos. [...] Uma velha despertada do silêncio da casa, mãos enrugadas tacteando o telefone, e do outro lado uma voz com sotaque, de um médico vindo de um país distante, onde os velhos ainda têm família. Sinto muito — dizia — sinto muito. E na verdade sentia. Sentia o desespero da sua solidão, amputada do amor de toda a vida e para sempre jovem, que nos sonhos nunca somos velhos.»
Nos primeiros anos, depois do internato policlínico em hospitais de Lisboa, Nuno Lobo Antunes fez o tirocínio da província, experiência que o levou a Manteigas, onde tomou a decisão de partir para Nova Iorque. O Columbia-Presbyterian Medical Center é a principal fonte dos relatos, sendo motivo de interesse a descrição pormenorizada do quotidiano hospitalar numa metrópole como Nova Iorque, com a sua mistura de raças, culturas e religiões. É capaz de não ser muito diferente do que se passa noutras cidades, porque a realidade multicultural é hoje uma evidência (talvez mesmo em Nelas), embora o factor de escala continue a ser determinante. O que é novo, em Portugal, é a capacidade de pôr em letra de forma este tipo de experiências, num registo acessível a toda a gente, sem nunca beliscar o rigor da informação e a exigência do discurso. Se a tudo isto acrescentarmos uma óbvia vocação de contador de histórias, não isentas de humor quando é o caso, temos a receita que faz de Sinto Muito uma obra singular.
Não poucas vezes, o autor surpreende-nos com sínteses exemplares: «A dor comia bocadinhos de nós. Partes de mim deixavam de existir.» Chama-se a isto limpar o osso de toda a enxúndia, que o mesmo é dizer da retórica auto-complacente. Noutras ocasiões, que são aliás frequentes, certo sentido de mise en scène empresta aos textos uma forte dimensão plástica, como aquele que descreve um atravessamento nocturno da ponte George Washington, o carro destruído entrevisto de relance, «o momento em que a luz se apaga, os olhos se fecham, o pêndulo pára», ele a caminho do hospital, desconhecendo, como não podia deixar de ser, quem ali morria contra o separador. Era afinal (soube-o mais tarde) a enfermeira sua assistente, «sorriso irlandês que tudo vence, olhos azuis de música celta, cabelos ruivos de outra raça», presumivelmente a Mary de O Sétimo Dia.
Sempre que necessário, a realidade revela-se com brutalidade: crianças que nascem com o cérebro destruído porque «as carótidas, interrompidas por coágulo, deixaram de fornecer o oxigénio necessário à vida das células», músculos e membros atrofiados e, mesmo assim, sobrevivendo até aos 15 anos. A história de La niña, filha de imigrantes colômbianos, é das mais pungentes do livro. Oscilando entre um mínimo de quatro e um máximo de seis páginas cada, os 44 textos reunidos em Sinto Muito formam um bloco coeso, tendo por fio condutor as mil histórias da vida de um médico que escolheu a pediatria «porque gostava do ar aristocrata dos pediatras do [seu] tempo» (a neurologia já era tradição na família). Escrito no tom compassivo de quem acredita nas grandes palavras, «fé, amor, vergonha, coragem», não admira que estas memórias de Nuno Lobo Antunes cativem tantos leitores."
"Entre a realidade, umas vezes brutal, outras vezes compassiva, a lição dos gregos: a catarse pela escrita."
Crítica Literária: * * * *
EDUARDO PITTA - Jornal Publico - ípsilon - 21 Novembro 2008
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
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3 comentários:
Li o livro Sinto Muito em dois dias. A forma de escrita do autor cativou-me de uma forma fora do normal. Um ser sensível cheio de "histórias de vida" para contar.
Obrigada Nuno Lobo Antunes, pela coragem da partilha.
A vida devia ser feita de pessoas bonitas como este senhor.
Maria Amélia
Eu subscrevo o que diz a Maria Amélia. O meu coração ficou mais próximo dos outros depois de ler o livro Sinto Muito.
Joana
Sinto Muito, li-o num sopro, no decorrer do passado sábado.
São experiências humanas, que aconselho vivamente.
Teresa Cunha Leal
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