segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

"Pais acreditam mais que os filhos no superpoder do médico para curar"


Nuno Lobo Antunes. Não é um nome habitual nas capas dos livros, mas desde que publicou 'Sinto Muito' que está sempre nos primeiros cinco lugares das tabelas de vendas nacionais. Na semana passada voltou ao primeiro lugar, porque o testemunho de muitos milhares de leitores leva a que outros queiram partilhar essa sinceridade. Aviso: este é um livro que faz chorar

Um médico tem de ser um pouco frio para tratar de crianças em fase terminal?

Não acho que tenha de ser frio. Terá de criar a distância necessária para que as emoções não interfiram com decisões de inteligência. Como não pode haver decisões ditadas pela emoção, é necessário que na relação médico-doente transpareça a nossa personalidade.

Os doentes que trata são muito jovens. É mais difícil lidar com a morte nessa idade?

Essa é a razão de ter escolhido este título. É um Sinto Muito ambíguo, de quem lamenta não ter sido capaz de fazer melhor. Qualquer oncologista tem de ter uma armadura que lhe permita tomar as decisões tecnicamente correctas. Isso implica distanciamento, porque se há momentos em que não se está perante uma decisão técnica, aí vem ao de cima tudo o que é a pessoa, as suas emoções, as suas memórias, de que forma aquela criança, jovem ou família tocam o médico, de que forma o lembram a sua própria infância ou o seu próprio filho... E o pediatra tem de voltar muitas vezes ao mundo da sua própria infância, sem ser infantil, e esse retorno à infância permite diálogos e interacções a um outro nível.

A sua vivência de infância e adolescência facilitou a relação com estas crianças?

Não torna mais fácil decidir se deve ser dado o remédio A, B, ou C, mas torna seguramente mais fácil criar empatia com a criança e pôr- -me na pele dela. E os miúdos sentem isso, percebem quando a relação do adulto é fingida ou quando não é. Sentem quando há uma afectividade que lhes é próxima e não é de plástico.

Muitos dos casos que conta no livro estão numa fase sem retorno. É por isso que diz: "O cancro do pulmão não faz cerimónia."

Nem todos os casos que descrevo são oncológicos, e estes, que são a maioria, foram vividos em Nova Iorque, num hospital que era o fim da linha, o Memorial Sloan-Kettering Cancer Center. É um hospital de cancro, muitas vezes eleito o melhor do mundo e procurado pelas pessoas sem esperança. É natural que em muitos casos o que se procura é dar um pouco mais de tempo, sabendo que o fim é inevitável. Os casos que escolhi foram os que me tocaram mais profundamente, e é natural que os que morreram me tenham tocado mais.

É mais fácil tratar estes pacientes de dia ou de noite?

A noite para o médico que está de urgência é seguramente diferente do dia. Na noite está-se mais sozinho, faz-se muita clínica pelo telefone e sem ver as pessoas. À noite estamos mais cansados e vulneráveis e com a afectividade mais à flor da pele. À noite, espera-se muitas vezes o aparecimento da cavalaria 7, ou seja, quem nos venha render e libertar. É um ambiente diferente, onde os fantasmas, o medo da morte e a solidão do doente emergem mais.

Quem mais espera que os médicos tenham superpoderes para curar. As crianças ou os pais?

Eu diria que os pais, porque os miúdos não têm a ideia de morte, e muitos não sabem até determinada idade exactamente do que é que isso se trata. Por outro lado, a vida deles é o que é, e não conhecem outra, sobretudo quando a doença se manifesta numa altura precoce e a vida não apresenta alternativas. O que esperam verdadeiramente é que o médico não lhes inflija muita dor! Portanto, a esperança de alguém que pode ter o poder de curar ou de salvar é mais por parte dos pais que das crianças. São os pais que querem acreditar mais no superpoder do médico para lhe curar o filho.

A maior parte das histórias passou-se nos anos 90. Desde então as coisas mudaram muito?

A natureza das pessoas não mudou nada.

Só houve evolução a nível científico?

Não na cura dos cancros no sistema nervoso. Aí estamos praticamente onde estávamos, não houve avanços extremamente significativos para os tumores malignos e há muito tempo que não há diferenças significativas no tratamento. Do ponto de vista cirúrgico, sim, a técnica melhorou imenso, tal como a precisão da radiologia, mas em termos de sobrevida, sobretudo para os tumores malignos no sistema nervoso, a diferença não é muito grande do que era há 50 anos.

E porquê?

Porque os tumores no sistema nervoso são resistentes à quimioterapia, o interior do nosso cérebro está protegido e tem uma barreira entre o sangue, os vasos e o cérebro. Essa barreira, que naturalmente impede a toxicidade do sistema nervoso através da ingestão de produtos, também é uma dificuldade à penetração dos agentes quimioterapêuticos. E tem ainda a ver com a natureza da própria célula nervosa, razões biológicas mas não de menos interesse neste tipo de tumores.

As pessoas têm a crença de que o cancro vai ter cura muito rapidamente. Os médicos acreditam nisso?

Têm de acreditar. Eu acredito e explico porquê: quando trabalhava no Memorial, tínhamos uma vez por mês uma reunião com o director do serviço, e ele acabava a reunião a dizer: "E agora vão trabalhar e encontrar a cura para o cancro." E nenhum de nós se ria ou sorria. Todos achávamos que essa era a nossa obrigação. Está sempre no horizonte de qualquer oncologista que trabalhe num hospital onde se faça investigação matar a besta e acreditar que pode estar perto.

As famílias americanas são diferentes das portuguesas no acompanhamento?

Claramente e não só no cancro, mas em todas as outras patologias. Nos países latinos e de pequena dimensão há um sentimento de família alargada, onde os avós estão muito presentes, os tios e até os primos, enquanto nos EUA isso não acontece. A família é pai, mãe e filho, irmãos, se os houver. Deve-se à dimensão do país, que leva a que as pessoas se afastem, a procurarem universidades que são distantes do sítio onde viveram e onde cresceram e à procura constante do melhor emprego e oportunidades, e isso leva a que as pessoas tenham uma enorme mobilidade. Os europeus percebem muito mal os americanos e a sua forma de viver porque as coisas não se passam assim.

Nunca consegue deixar de ser português e até escreve: "O Harlem é a nossa Alfama!"

É inevitável. Estou impregnado do leite que bebemos em pequenos, da escola primária onde aprendemos as primeiras letras... Para transmitir o que sinto tenho de usar referências compreensíveis aos que me lêem.

Quando se lê o seu nome lembramo-nos logo do escritor da família, o António Lobo Antunes!

Eu acho que é preciso ser um pouco louco para, sendo irmão do António, escrever um livro. Mas não é um livro de ficção! Provavelmente é inevitável, mas é uma comparação completamente desinteressante.

Isso pesou enquanto escrevia?

Eu senti o peso de escrever algo que não prestasse.

Diz que a sua mãe só lhe pedia nota positiva nas notas escolares. Não é partilhar demasiado?

Se calhar a minha mãe acha que sim, eu acho que não.

O prefácio é de António Damásio, que vive nos EUA. Portugal pode ajudar na descoberta de uma cura?

Evidentemente que há imensa coisa que se pode fazer em Portugal, mas até agora a contribuição tem sido relativamente marginal. Parece-me haver nos anos recentes um investimento enorme na investigação básica e na criação de institutos para tal. Um deles foi incentivado pelo meu irmão João e dá provas fantásticas. Sempre achei que o sermos um país pequeno não nos impede de fazer coisas muito grandes e de criar condições para que as nossas elites técnicas e científicas trabalhem em Portugal e com certeza que faremos contribuições de grande peso.

Porque foi para os EUA?

As pessoas não partem por prazer, mas porque sentem necessidade. Eu era um solista à procura de orquestra, e nós sabemos onde estão as grandes orquestras. Mas, como sou optimista, vejo que para a criação de um novo espírito em Portugal é preciso ter esperança.

Acha que o actual Governo vai actuar no sentido de que a ciência também seja uma profissão em Portugal?

A pergunta que me faz é política e põe-me numa posição em que devo definir algumas coordenadas das minhas convicções políticas. O que me parece, mesmo se quisesse pôr-me como um observador independente, é que o primeiro-ministro tem falado muito no progresso tecnológico e na aposta no avanço tecnológico como solução para alguns dos atrasos e das deficiências do País. E não tenho razões para pensar que não seja genuíno.

Qual é o seu quadrante político?

Estou ligado ao Movimento Esperança Portugal, mas até aqui votava PS.

JOÃO CÉU E SILVA Aqui.

Sem comentários: