sexta-feira, 6 de junho de 2008

Os Livros Enquanto Produto

Na sua edição de 5 de Junho, o Marginante chamou, às conversas na Rádio Europa Lisboa, a fundadora e editora da Verso de Kapa, Maria João Mergulhão.
Marginante - Concorda que o livro terá deixado de ser um objecto de arte? E se sim, perdeu ou ganhou com isso?

Maria João Mergulhão - Penso que não, não deixou de ser um objecto de arte. Eventualmente, deixou de ser um objecto de culto, no sentido de elitismo. Ou seja, deixou de ser apenas para um grupo de pessoas – os designados intelectuais, aquelas pessoas que tinham, digamos assim, credibilidade para falar sobre o conteúdo dos livros. Vejo o livro de hoje mais como objecto de arte. Actualmente, não só ligamos aos conteúdos dos livros, como ao seu aspecto estético, ao seu aspecto enquanto objecto. Se calhar é um bocadinho exagerado dizer objecto de arte, mas aquilo que não se via há uns anos atrás eram capas lindíssimas como há hoje, papeis muito bonitos e com uma leveza extraordinária… Livros que num museu não ficariam de todo mal. Portanto, acho que nos preocupamos mais, hoje em dia, não só com o conteúdo como também com a estética do livro. Se eu entro numa livraria e se tenho um livro que apenas me apele pelo conteúdo - e não tanto pela capa e pela sua estética -, ele cumpre apenas uma função. E por muito que isto possa chocar as pessoas, hoje um livro é tanto um objecto como outro produto qualquer.

Marginante - Chegámos a um ponto em que parece não passar uma semana sem dezenas de lançamentos novos, o que até pode ser visto como loucura, num mercado tão pequeno como é o nosso. Como é que um livro se torna rentável e como é que se consegue distinguir comercialmente dos outros, numa competição tão feroz?

Maria João Mergulhão - Penso que o livro está a seguir o circuito ou o curso de todas as outras áreas. É evidente que os índices de leitura subiram, mas também é evidente que o número de títulos aumentou exponencialmente, pelo que continua a registar-se uma disparidade entre o numero de títulos editados e a quantidade de pessoas que lêem. Se pensarmos que mais de 50% dos portugueses não lêem um livro por ano, obviamente que temos razões para alguma aflição quando pensamos que editamos, segundo números da APEL, entre 800 a 1000 novidades por mês. A grande “culpa”, digamos assim, se é que há culpa de alguém, obviamente é dos editores. Cabia-nos refrear esta loucura. Ainda assim, é evidente que compreendo - até porque também sou editora - esta dita “loucura”, porque é de facto inegável que há realmente mais franjas de pessoas que lêem. Ora, se abrimos a novas pessoas a possibilidade de ler, se essas pessoas lêem, então vamos dar livros a todas elas. E quando falamos em ‘servir todo um público’, é evidente que temos de publicar mais livros, em nichos que já sejam suficientemente grandes e onde realmente caibam determinado tipo de publicações. O que acontecia há uns tempos atrás é que nem todos os leitores tinham livros. Havia apenas uma determinada franja - os tais que nós considerávamos intelectuais, ou como queiram chamar-lhes - que tinha realmente muitos livros, enquanto uma esmagadora maioria não tinha livros nenhuns. Agora, temos livros para todos e para tudo. E obviamente, como em tudo na vida, quando se sai de repente do pouco, passa-se quase sempre para o excesso. Vai ser interessante ver o reequilíbrio natural que será feito pelo próprio mercado.

Marginante – Até porque se fica com a ideia de que quem barafustou há alguns anos contra a invasão da chamada literatura “light” é capaz de estar, hoje, a deitar loas à suposta qualidade da mesma, numa altura de desgoverno em que prostitutas assinam livros, crianças assassinadas são motivo para fazer edições esgotadas, uma figura de um talk show com vinte e poucos anos sente-se à vontade para escrever uma biografia… Tudo serve para ser livro, se vender?

Maria João Mergulhão - Se vender, diz bem. De qualquer maneira, na Verso de Kapa não publicamos livros desse género. Não acho que faça sentido publicar livros onde se explore, de alguma forma, seja a prostituição, seja uma criança raptada, seja uma criança adoptada, enfim: a exploração da imagem de terceiros que não são tidos nem achados. Dentro das linhas de edição da Verso de Kapa, isso não entra. Agora, todos os outros livros, tenho de dizer-lhe que não me choca nada. Chamem-lhe literatura light, chamem-lhe o que quiserem: literatura quotidiana, novela, folhetim, não interessa propriamente o nome. O que interessa é que se serve para as pessoas lerem; se as pessoas passam a comprar livros e a ler esses livros, começando por ai e passando a ler outras coisas, (quase) tudo serve. Porque haveria eu de publicar só uma linha de ensaio, ou uma linha de romance histórico denso, se depois não tenho público a quem vender? Claro que também há que publicar isso, mas sem menosprezar tudo o resto. Nós - editores, produtores - estamos a funcionar para um mercado. Não estamos a funcionar para dentro, não estamos a funcionar para nós e muitas vezes dizemos isso aos nossos autores: «não escreva para dentro, não escreva para si. Escreva para fora, escreva para o mercado, porque só assim é um autor interessante. Se está a escrever para si, para dentro, então escreva para si, para a sua família ou para a sua gaveta».

Marginante – O livro tornou-se, então, algo que pode ser omnipresente e chegar a todos os públicos, a todas as classes…

Maria João Mergulhão - Desde o momento em que alguém consiga transmitir uma mensagem ou queira deixá-la, porque não escrever e deixar um testemunho escrito? Não falo obviamente desses casos de explorar a imagem dos outros, falo de coisas que são muito importantes em determinada altura da vida e que devem ser obviamente escritas. Vinte ou trinta anos depois, alguém se calhar vai precisar dessa obra para reconstituir o passado. Passe o exagero da analogia, pensemos no Holocausto. Se os sobreviventes não tivessem escrito tudo, passado testemunho de tudo, feito livros e livros e mais livros, se calhar o mundo já se tinha esquecido ainda muito mais do que já faz. Ou voltemos à literatura light, que teve a sua expansão nos anos 90 do século XX e no início deste XXI. Foi uma tendência que fez moda e que é importante retratar. Vamos ainda mais para trás, ao tempo das avós, para recordar a revista “Crónica Feminina”. Não era o que as pessoas liam na altura? E hoje em dia, programas como o “Conta-me como foi”, na RTP1, vão ali buscar informação.

Marginante – Já vimos que no mercado editorial como um todo, não haverá actualmente vergonha em considerar um livro como um produto comercial. Ora, nesse sentido, acha que as empresas estão atentas ao papel e ao potencial dos livros enquanto instrumentos de comunicação e marketing? Ainda não é uma área muito explorada, ao que parece...

Maria João Mergulhão - Sim, tem razão. Embora, claro, como em tudo na vida, em épocas de recessão há sempre menos abertura a tudo o que seja patrocinável. No entanto, acho que há empresas que já contemplam os livros como produto e, logo, patrocinável. Falando do meu caso, na Verso de Kapa, vamos lançar agora um livro, «O Aprendiz de Rembrandt», de Alexandra Guggenheim, um romance baseado justamente em cadernos recentemente descobertos de um aprendiz do pintor. Com este livro, vamos ter acesso a uma Amsterdão do século XVII, em pleno apogeu económico e cultural e é o tipo de obra que pode perfeitamente estar aberta a parcerias. Neste caso, contamos com as
Viagens Marsans - que vão fazer um sorteio para oferecer, aos leitores que comprem o livro, viagens e estadias à cidade holandesa. Temos também outro tipo de parcerias, por exemplo o caso da Daniela Teixeira, que partiu a 3 de Junho para os Himalaias e vai tentar ser a primeira mulher portuguesa a escalar uma montanha com mais de 8 mil metros em estilo alpino. Ela está a ser patrocinada pela Powerade e a marca quis fazer um livro para maximizar esse patrocínio. Ou seja, vê-se que há empresas em que os livros já fazem parte do plano de comunicação. Mas é muito pouco, ainda. Por outro lado, acho que há muita falta de cuidado nas propostas. Temos em Portugal empresas muito fustigadas, que às tantas já rejeitam qualquer tipo de patrocínio porque recebem pedidos de todo lado, a toda a hora, a todo o minuto… E acho que às vezes já lhes é mais fácil dizer que não há budget para este ano. Além de editora, sou marketeer de formação e desempenhei alguns cargos de marketing e de direcção de marketing em que se via exactamente isso, um excesso tal que em determinada altura não é possível contemplar tudo nem olhar devidamente para as propostas.

Marginante – Apesar de estarmos a falar do livro enquanto produto cultural ou enquanto produto comercial, se quisermos ir à eterna comparação com os CD´s, vamos a um assunto que continua constantemente na ordem do dia que é a diferença de tributações nesta área. O livro é, até agora, o privilegiado, porque tem o IVA mais pequeno; esta diferença tem ajudado nas vendas, ou nem por isso?

Maria João Mergulhão – Não, de todo. Obviamente não sou eu quem faz as leis e portanto não posso responder porque é que o CD tem 21% de IVA (mesmo que seja um CD-Rom didáctico) e os livros só têm 5%. No entanto, o que lhe posso dizer é que lá fora há taxações de 1% ou mesmo 0% para os livros. E o exemplo devia vir daí. Seja como for, acho absolutamente estúpida a taxa de IVA para os dois suportes. Pois se livros e discos já são produtos que nem todas as pessoas compram, uma vez que são produtos obviamente de segunda, terceira ou quarta necessidade, é evidente que as pessoas vão estar previamente condicionadas para os preterir. O que temos é de criar formas de chamar as pessoas àqueles produtos e não de as afugentar. E não precisamos de ficar pelo IVA, podemos ir ao preço. O livro é caro, pois é: mas é caro porque as tiragens são baixas, porque as pessoas não lêem o suficiente. Claro que a intenção do Estado, penso eu, com esse IVA a 5%, é ajudar a não afugentar leitores. Mas não chega. O problema nas leis é que a realidade cada vez mais as ultrapassa, torna-as obsoletas e elas não são revistas. Como por exemplo a lei do preço fixo, que foi feita há imensos anos atrás, quando apareceram as grandes superfícies, para proteger o retalhista. Hoje em dia é uma lei absolutamente obsoleta e continua por rever.

Marginante – Na comparação entre livros e CD’s, temos inclusive bandas e outros projectos musicais de engenho aguçado que já estão a fazer, ou a tentar fazer, uns livros muito pueris de 10 paginas com CD lá dentro, chamando àquilo um livro com CD…

Maria João Mergulhão - É evidente! Veja-se o caso dos audiolivros. São inovadores, são cómodos, ajudam a aproximar os livros de mais leitores, têm uma componente de incentivo à leitura ouvida por pessoas mais idosas ou com impedimentos de visão, dão trabalho a estúdios, a actores… e ainda assim ficam sujeitos a pagar a taxa máxima de IVA. Obviamente que os editores tiveram de dar volta ao assunto. Todo o burro come palha é preciso é saber-lha dar. Mas isso não tira a total e absurda falta de lógica em taxar duas coisas iguais, na essência, com bitolas diferentes.

Marginante – A actualidade trouxe, através da blogosfera, uma forma para os autores quase estarem em audição permanente e em tempo real. Dantes, o seu manuscrito poderia passar por diversas editoras e não ter até grande atenção, mas hoje em dia, com um blogue, qualquer pessoa pode mostrar – quando o tem - o seu talento na escrita. Como é que - e porque é que - pode ser legitimo transformar um blogue em livro?

Maria João Mergulhão – Pode ser, de facto. Mas é uma tendência, como todas as outras. O blogue pode ser muito bom mas depois pode não funcionar no mercado, em livro. O que é normal: digamos que é já um produto em segunda mão. Na Verso de Kapa, os únicos que lançámos foram precisamente aqueles que já estavam encerrados, que já tinham cumprido o seu ciclo na Internet e poderiam estar prontos para uma segunda vida diferente, em papel. Mas tudo tem o seu tempo. Há muitos anos atrás, também fiz vários livros de crónicas que passámos a livros e que venderam muitíssimo bem. Mas foi “uma época”, hoje em dia já é um fenómeno que deixou de se vender. A mesma coisa com telenovelas e séries, que já passei a livros e entretanto deixaram de ser uma aposta comercial. O que funciona hoje já não resulta um ou dois anos mais tarde. Ou porque passou a moda, ou porque as hipóteses de escolha crescem. Por exemplo: é muito natural que se eu entrar numa livraria e me confrontar com o escolher entre uma coisa nova/diferente e o livro da “Jóia de Africa” que já passou na TVI, então vou escolher mais facilmente aquilo que não tenho ou não conheço. O leitor não é burro: há quem ainda pense que lhe podemos dar qualquer coisa e ele compra, mas cada vez menos é assim. O leitor sabe escolher, sabe decidir. Percebe que um blogue é uma coisa que já está ou esteve na net; que uma crónica é aquilo que já saiu na revista e que uma série é aquilo que já passou na TV. A única excepção que continua válida, neste campo, é a dos livros que deram origem a filmes. O livro contém sempre outro tipo de conteúdo que o próprio filme não conseguiu embarcar, na sua hora e meia. E o filme serve de chamariz para a obra que lhe deu origem - e mesmo que não seja um best-seller, pode ser um long-selller. No essencial, a edição é um mercado de oportunidade e temos de saber aproveitar as “ondas” mas também saber ver quando essa “onda” passou, para surfarmos a seguinte. Dantes, fazíamos planos de marketing e planos editoriais para cinco anos, depois passámos para de dois a três anos e agora, se preciso for, trabalhamos com planos a seis meses ou menos.

Marginante – Esta concentração que estamos a ver no caso do Grupo Leya vai muito provavelmente acabar por verificar-se com outras editoras, que vão transformar-se em grupos. Ao mesmo tempo, temos fundadores históricos de algumas dessas editoras a abrirem novas empresas, porque querem um projecto pessoal e investem nele o seu próprio dinheiro e a sua carolice. É uma dicotomia interessante…

Maria João Mergulhão – Sem dúvida. Acho que as editoras seguiram o curso de outras empresas, como as de publicidade ou de eventos. Há uns cinco anos, o mercado estava cheio de estruturas pequeninas, pequeninas, que de repente começaram a aliar-se ou a ser compradas e deram origem a grandes realidades empresariais. Mas as pequenas empresas não deixaram de existir, nem penso que deixarão. Este fenómeno de fusões e aquisições no mercado livreiro não é de todo inesperado. Estava-se há anos à espera que isso acontecesse. Talvez não tão rapidamente, é certo, nem envolvendo editoras com linhas tão diferentes. Mas era uma realidade anunciada. Seja como for, acho é que deixou de haver lugar para estruturas intermédias. As grandes hão-de reorganizar-se, fazer os seus downsizings ou reposicionar-se nos seus objectivos. Têm estruturas enormes, “atacam” nas grandes massas e podem perder algum dinheiro com alguns livros. As pequenas têm recursos muito escassos, mas estruturas financeiras magras e grande agilidade operacional. Eu, nesta altura do campeonato, estou muito contente por ser pequena e não tenho intenção de crescer muito. A intenção é tentar manter a Verso de Kapa nesta média de publicação de 20 a 25 títulos por ano e sempre mais em autores portugueses.
Marginante - Porque estamos em ano de rebrandings, parece que nem a pequena Verso da Kapa se deixou ficar igual. Na verdade, acabam de mudar o vosso logótipo e substituíram o “da kapa” por “DE Kapa”. Porquê?

Maria João Mergulhão - Em termos de lettering, tínhamos um “k” invertido. Mas há sempre tempo para mudar e achámos que estava na altura, ao fim de três anos de actividade. Se nos chamamos Verso, achámos que deveríamos ter um logótipo com um “V” em vez de um “k”. Além de o “V” se associar naturalmente a vitória, a sucesso. É mais simples, mais escorreito e um novo princípio para o nosso nome e para a nossa empresa. Quanto à mudança do “da” para “de”, foi o público que o determinou. Fizemos um estudo final na Feira do Livro, na sequência de outros; e os clientes comprovaram-nos que preferiam assim.

Marginante – Quem assinou a vossa nova imagem?

Maria João Mergulhão – A BRK-Break the line, que também trabalha connosco nas capas dos nossos livros.

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